Ao cruzar a fronteira dos trinta, deixando pra trás o frescor e certa inocência que há nos vinte, eu não supunha a maior das mudanças que a transição me traria. Fui advertida de uma série de possíveis transformações, mas ninguém jamais me havia revelado justamente o mais grave dos sintomas dessa passagem. Não me prepararam pra algo que antes parecia não estar no script: a consciência da finitude.
Os vinte levaram embora com eles a certeza de que a vida é pra sempre. Os trinta trouxeram o avassalador sentimento de transitoriedade e, com ele, a percepção de que muitos dos desvios que tecemos na malha do tédio cotidiano são, no fundo, uma tentativa de driblar essa condição. Dar um mergulho no mar. Ouvir um disco que nos emocione. Assar um bolo no meio da tarde. Encontrar os amigos pra jogar conversa fora. Viajar. Por alguns minutos ou horas - ou até mesmo dias, nos melhores casos -, esquecemos que é tudo tão efêmero. Acreditamos que pode haver música e bolos fumegantes e o calor de pessoas queridas indefinidamente, sem prazo de validade.
Um desses momentos calhou de acontecer no Conceição Discos, o misto de café e loja de vinis que Talitha Barros inaugurou há algumas semanas em São Paulo. A natureza se encarregou de providenciar chuva fina e frio manso. Mal entramos, Sarah Vaughan irrompeu na vitrola. Depois, Chet Baker. Por fim, Ray Charles. É preciso falar ainda no cheiro de comida boa que havia no ar, o que levou um amigo a observar com muita propriedade: “como é bom cozinha que cheira, quase não se vê isso nos restaurantes de hoje”.
“Cozinha que cheira” era mesmo a impressão que eu tinha do que faz Talitha Barros. Sempre ouvi dizer que é das mais talentosas cozinheiras de São Paulo, dessas que abordam com profundidade o simples, o essencial. Ainda não tinha conseguido conferir seu trabalho, especialmente pelo pouco tempo que permaneceu em cada um dos endereços por onde passou nos últimos anos – como Mangiare, Bravin e Brasil a Gosto. Quando soube que abrira um negócio seu, vislumbrei a oportunidade de vê-la em ação. Agora, dona do próprio nariz, com liberdade pra fazer comida do seu jeito.
O pequeno salão consiste em um balcão e umas poucas mesas. No cardápio, não há muito. Queijo quente (em algumas variações), pão de queijo recheado com pernil, tortas salgadas e uma pequena seleção de sobremesas, além de um prato do dia (oferecido a inacreditáveis R$20,00) e um bolo do dia. O suficiente pra me revelar que os amigos não mentiam ao dizer que a moça é cozinheira de mão cheia.
Experimentamos o incontornável pão de queijo com pernil e seguimos com o prato do dia, um farto arroz de língua.
Úmido, extremamente saboroso, era temperado com precisão e equilíbrio. Pelo que ouvi por aí, seu arroz de suã e o de rabada são igualmente elogiáveis. O tipo de prato que se basta, não precisa de antes e depois. Mas como o depois eram as famosas sobremesas de Talitha, o bom senso mandava ir em frente. Éramos quatro, então, compartilhamos as três opções do cardápio e uma fatia do bolo do dia, de banana.
O pudim de leite, considerado por muitos o melhor da cidade, era, de fato, delicioso. Um veludo, sem um único furinho – o que o enquadra na minha classificação de pudim ideal.
A torta de limão, outra beleza. Boa massa, ótimo merengue, creme de limão com bem-vinda acidez e açúcar na medida. O gostoso brownie compartilhava o equilíbrio na doçura. O mesmo se diga do bolo de banana, macio, com marcante sabor da fruta.
Pra acompanhar o café, paçoca feita na casa, algo salgada, uma delícia.
A tarde que passei ali podia ter sido apenas uma prazerosa visita ao novo café, mas acabou se revelando um desses momentos em que a música, a comida e a companhia são tão boas que a gente quase acredita que pode ser assim pra sempre.
Conceição Discos – Rua Imaculada Conceição 151 – Vila Buarque
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