Samantha Aquim e João Tavares: parceria que aponta para o futuro do cacau e do chocolate no Brasil

Novembro 2011

Alguns posts atrás, contei aqui sobre minha visita à Fazenda Leolinda, em Ilhéus, ao lado da chef carioca Samantha Aquim, com o objetivo de conhecer melhor seu trabalho em parceria com o cacauicultor João Tavares. Repito o que disse naquele post: vivi ali uma das mais belas experiências que a gastronomia já me proporcionou. À época, eu não podia contar muito mais, pois trabalhava numa matéria que foi publicada na segunda edição da revista Mesa Tendências, que chegou às livrarias em setembro. Muitas pessoas têm me cobrado falar em detalhe sobre o assunto aqui no blog. Especialmente, quem não encontrou a revista pra comprar no Rio de Janeiro. Eu me informei a respeito e soube que, por aqui, é possível encontrá-la na Livraria Cultura e na Laselva Bookstore. De toda forma, registro agora ao menos parte do texto. A íntegra não faria sentido publicar nesse espaço, pois é um texto bastante grande, uma matéria que rendeu onze páginas de revista... Mas compartilho aqui com vocês um pouco do espírito desse trabalho ímpar, que eu tive o prazer de ver de perto.



A fazenda. O encontro. A parceria.

O ano era 2007. A chef carioca, que, ao longo de sua trajetória, assumiu também a faceta confeiteira/chocolateira, já era premiada pela linha de chocolates à venda em sua Butique Aquim, no Rio de Janeiro. No entanto, jamais havia estado em uma plantação de cacau. Numa epifania, sentiu que era preciso fazer esse movimento, que a levou, num rompante, ao sul da Bahia. Era o momento certo. Poucos anos antes, começava a ganhar corpo, com iniciativas pontuais, a produção de cacau fino no Brasil. Entre tantos fazendeiros na região, o destino colocou em seu caminho o homem que personaliza a recente reformulação dos conceitos de qualidade do cacau no país.




O cacauicultor João Tavares é reconhecido, inclusive entre seus pares, como líder de um processo de mudança no universo do cacau brasileiro. João criou caminho próprio, fruto de muita pesquisa, investigação incessante, buscando romper com avaliações preconcebidas do mercado mundial a respeito do que seria um cacau de qualidade. Provar o valor do que tinha em mãos era mera questão de tempo. Foi recentemente premiado com o Cocoa of Excellence como o melhor grão da América do Sul na categoria cacau-chocolate. Tem, hoje, entre seus clientes, nomes como Nespresso, o chocolatier belga Pierre Marcolini, a empresa brasileira Nugali e o baiano Diego Badaró, sócio da Amma Chocolates, que tem desenvolvido papel fundamental no contexto atual de valorização do chocolate brasileiro. Diego, aliás, pretende lançar em breve uma barra de origem única, com o cacau de Tavares. E não esconde a admiração que tem pelo produtor: “João é um grande amigo, uma pessoa que admiro muito. É um guerreiro do cacau, é a nata do cacau. Desenvolveu técnicas únicas na linha de produção e tem muito a contribuir com o universo do chocolate. Está, certamente, entre as três ou quatro pessoas que mais entendem de cacau no mundo hoje”.

Foi no encontro com Samantha Aquim que João vislumbrou a possibilidade de ver suas ideias alcançarem expressão máxima. Não no sentido comercial, mas no de ver nascer um produto que refletisse a essência de sua filosofia de trabalho e seu esforço em provar que o cacau brasileiro, mesmo após o nefasto episódio da vassoura-de-bruxa, está entre os melhores do mundo. Buscava a amêndoa perfeita e inspirou em Samantha o desejo de idealizar um chocolate que resgatasse o sabor dessa amêndoa. Nada fácil, considerando um mercado onde o chocolate se desconectou de seu DNA e passou a ser mais identificado com elementos como leite, açúcar e baunilha do que com o sabor do grão que lhe dá origem. “De uma maneira geral, vende-se algo sem lastro. Você entra nas lojas de chocolates e não vê uma foto sequer de um pé de cacau, mas vê uma casa nos Alpes. O que é que isso tem a ver com o universo do cacau? Talvez tenha a ver com o leite no mundo do chocolate... Mas isso é uma desconexão total”, dispara João. A chef complementa: “Chocolate é cacau e cacau não é neve; é floresta tropical.” Embora conscientes das dificuldades existentes em qualquer quebra de paradigma, juntos, ousaram acreditar que o êxito era possível.

Para a carioca, aquele encontro foi determinante na realização desse projeto. Abriu-se diante dela um universo novo. “Quando pisei pela primeira vez na Fazenda Leolinda, eu fiquei enlouquecida. Cada etapa da fermentação do cacau que eu ia acompanhando era uma surpresa pra mim. Do meu ponto de vista de cozinheira, aquilo era fascinante”, conta. Sua maior surpresa seria a de perceber ali nuances de aroma e sabor que ela, mesmo com a experiência de chocolateira, jamais havia encontrado em um chocolate. Entendeu que precisava iniciar uma parceria como aquele produtor. “Tenho consciência de que só fiz esse chocolate porque conheci o João. Acredito no poder de certos encontros na vida. Não fosse isso, esse chocolate não existiria. Eu precisava encontrar aquele homem. E creio que ele também precisava me encontrar. Aprendi muito ali e sei que, como cozinheira, eu também pude acrescentar algo ao trabalho deles.”




De fato, para João Tavares, acompanhar a elaboração do produto idealizado por Samantha foi também um aprendizado. O fazendeiro via, pela primeira vez, um chocolate sendo processado com modelos de torra e conchagem completamente diferentes do padrão: “Eu acompanhava a torra conduzida por ela e dizia: ‘Samantha, esse cacau está cru’. Ela dizia que não. Eu insistia. Nunca tinha visto uma torra tão baixa. E ela só dizia: ‘É assim que eu quero’”. Aos poucos, foi entendendo que era exatamente naquela escolha de intervenção mínima adotada pela chef que estava o caminho para preservar a essência do sabor da amêndoa no produto final. “Ela conseguiu se desligar do padrão de torra que prevalece no mercado. São padrões que estão em toda a literatura sobre chocolate, mas que são voltados para uma produção muito comercial, que, em geral, parte de um cacau sem tanta qualidade. Se se tem em mãos um cacau perfeito, ele já não tem, naturalmente, amargor nem excesso de acidez. Não é preciso mascarar defeitos com a torra. O que está ali são as notas do próprio cacau. Era isso que Samantha queria resgatar”, conclui.

O chocolate



O resultado da entrega mútua de dois profissionais obstinados é um chocolate único, batizado como “Q”. Samantha explica que é um jogo sonoro, algo sugestivo, que leve as pessoas a se perguntarem: “Quê?”. Com ele, propõe uma caminhada em etapas. Partindo do líquor (massa que resulta do processamento do cacau) obtido dos grãos selecionados exclusivamente de um lote específico da Fazenda Leolinda, segue por dois caminhos distintos de degustação: suavidade e intensidade. Ambos percorrem uma linha progressiva de percentuais de líquor (30, 50 e 70%, associados a blends desenvolvidos pela chef) e vão distanciando o consumidor do lugar-comum, preparando seu paladar para o novo, o inesperado. Refletem duas possibilidades de sabores que se abriram no processo de construção daquele chocolate. Ela não quis descartar nenhuma delas. Os dois caminhos convergem para um mesmo último ato, o “Q0”, que simboliza a ousadia da busca pelo chocolate perfeito. Uma barra que concentra 72% de líquor, 5% de manteiga de cacau e açúcar. Nada mais. Quem espera encontrar amargor tem a surpresa de descobrir nele a doçura de notas frutadas. “Intensidade é diferente de amargor. Acima de tudo, a gente não pode se esquecer de que cacau é fruta”, lembra Samantha.



Para a chef, o que estava em jogo era mais que o lançamento de um produto; era um sonho que se concretizava. E que merecia ser apresentado de forma que exaltasse o que havia de onírico naquele trabalho. As linhas sinuosas de Oscar Niemeyer foram a linguagem escolhida para dar forma a uma barra tão especial como a do “Q0”. Um chocolate que não tem nada de comum não poderia parecer comum. Ao preço final de R$1.580,00, uma caixa em madeira alinha todos aqueles caminhos de sabores que levam a ele. Acompanhada, ainda, de um livro que conta a história de sua concepção e que, através de gráficos e notas, orienta a degustação. Sem dúvida, um produto de luxo. Inacessível ao grande público. O que leva à indagação: a inacessibilidade não conflitaria com a ideia de mostrar ao Brasil que o cacau e o chocolate brasileiros podem estar entre os melhores do mundo? Samantha Aquim diz que não. “Isso não é só um chocolate, é uma história que eu precisava contar. E eu tinha que contá-la da melhor maneira possível. Meu lucro com ele é quase nada. O que eu precisava era dar um primeiro passo no sentido de noticiar ao mundo que existe no nosso país a possibilidade de um chocolate como esse, colocar o Brasil no mapa. E tenho conseguido isso por onde passo. A partir daí, posso abrir outros caminhos e já estou trabalhando nisso”, sentencia.

Não são palavras no vazio. A chef se debruça, atualmente, sobre uma série de desdobramentos que vislumbra para esse trabalho, na intenção de tornar mais acessível para as pessoas o universo do cacau, compartilhar o conhecimento que acumulou nos últimos anos. Prepara-se para lançar um produto que representa mais um passo nesse sentido, o chocolate “LIQORA”. Trata-se de uma barra de 70g, feita apenas com cacau, manteiga de cacau e açúcar, nada mais. Na embalagem, haverá a veiculação de um texto educativo. Seu objetivo é iniciar um processo de educação do consumidor, é ensinar que o chocolate nasce de uma amêndoa de cacau e que é feito a partir do líquor.

E deixa claro que, ao iniciar essa jornada, assumiu um compromisso do qual não abre mão: “Não quero simplesmente botar uma barra de chocolate numa prateleira de supermercado. Eu quero ajudar as pessoas a entenderem o que está por trás daquilo, a lembrarem que aquele produto vem do cacau e que cacau é também um fruto brasileiro. O sabor do grão vem se perdendo no meio do caminho. Pouquíssimos consumidores, mesmo entre os mais sofisticados, conhecem cacau, sabem que sabor tem. Quero conduzir as pessoas nessa viagem de volta à origem”.

por: Stela Maria Suzart em 07-05-2017
Obrigada , Samanta por sua sensibilidade, inteligência ao perceber detalhes que no final saiu um produto de excelência .
por: Luisa Helena Mortene em 21-12-2017
Curiosa para conhecer tudo isto. Parece um mundo a parte. Poético e Inusitado.
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