Suponho que o pequeno restaurante dos irmãos Adrià em Barcelona, comandado pelo caçula Albert, dispense apresentações. A questão é que, com a relativa facilidade com que ainda se consegue uma mesa ali, me pergunto, por outro lado, se todos já se deram conta de que há muito do extinto elBulli na nova casa inaugurada pela dupla em 2011. Jamais estive no mítico endereço na Costa Brava, mas não é preciso ter estado pra perceber isso. O ambiente e a vibração no 41 Grados são outros, os elementos cênicos e a trilha sonora têm, agora, papel determinante no conjunto da obra, mas a proposta gastronômica me parece muito semelhante. Inclusive, estão em cartaz alguns clássicos do restaurante que, até bem pouco tempo, deixava o planeta de joelhos por uma reserva.
A cada noite, as dezesseis pessoas que ocupam as poucas mesas atravessam mais de quatro horas de jantar em torno de um menu de 41 etapas – quase sempre, pequenos bocados pra comer com as mãos, alguns deles acompanhados de coquetéis assinados pela casa. Na verdade, jantar nem é a palavra mais apropriada. Trata-se de uma experiência de outra ordem. Algo como ir ao circo ou a um show. É espetáculo, no melhor sentido da palavra. As ideias de entretenimento e emoção estão profunda e indiscutivelmente ligadas à concepção da coisa toda. E é, de fato, impossível não se divertir. Obviamente, num menu de 41 cursos, não se pode gostar de tudo – e creio que os chefs nem tenham isso como meta. É claro também que há momentos de cansaço, inclusive mental. Mas surpresa e encantamento estão presentes em boa parte do percurso.
Sem mais rodeios, vamos direto ao que interessa. Depois de muito ponderar, decidi poupá-los de um monótono relato prato-a-prato e me deter no que, pra mim, foram os pontos altos da noite .
O bosque onde nada é o que parece. Crocantes de pele de porco com yuzu, framboesas e laranjinhas que explodem, geladas, na boca, folhas de groselha com cacau e casulos com textura de marshmallow, pra comer direto do “galho”.
Sensacionais esferificações de kalamata dividiam a cena com queijo feta feito na casa e tomates secos cheios de doçura, na companhia de um perfumado vinho de romãs.
Os falsos tentáculos de polvo eram, na verdade, crocantes de flocos de arroz e kimchi seco, o que lhes confere, intencionalmente, coloração que remete ao milho roxo peruano. Minha vontade era comer algumas dezenas deles...
Deliciosa, a famigerada airbaguette envolta em jamón Joselito, mais um clássico do elBulli, também me deixou um persistente desejo de bis.
A inspiradora paisagem nórdica trazia cenouras com creme azedo e farelo de pão preto e smorrebrods com carpaccio de carne, picles de cebola e queijo defumado.
A margarita sólida aprisionava, em uma esfera âmbar, tequila, extrato de agave, limão e cristais de sal, numa lúdica homenagem ao México.
No atordoante bánh mi, cada detalhe era impecável: o pão crocante, o saboroso naco de porco ibérico, a julienne de vegetais, a deliciosa maionese. Me pergunto se mesmo no Vietnã não deve ser difícil encontrar um exemplar tão bom...
O rosbife versão 41 Grados, coroado por um tantinho de um ótimo béarnaise e uma perfeita cebola caramelizada, acompanhado de batatas suflê, veio restaurar meu entusiasmo num momento em que ele rateava.
Sublime é o adjetivo que me ocorre pra traduzir o curso de queijos. Uma mistura de queijo de ovelha com figos, moldada como pequeninas castanhas envoltas em mel. E, ainda, torta cañarejal com lascas de trufas, na companhia de delicadíssimos merengues de mel.
O frescor da nitro caipirinha de abacaxi abriu caminho para as sobremesas. O sorbet feito à mesa é servido na própria fruta, acompanhado de pedacinhos de abacaxi cozido a vácuo com cachaça, laranja e licor de baunilha e, ainda, coquinhos de avelã com leite de coco e cacau.
Incríveis cupcakes de torta de limão, que não são exatamente cupcakes. Entre a forminha comestível e o merengue de camomila, um creme fluido e geladíssimo de limão, que deixa o céu da boca em estado de graça.
A sutileza dos sablés de chá verde com gelatina de tangerina.
Levíssimos, quase etéreos, suspiros de groselha abraçam o sorvete de iogurte numa sobremesa de delicadeza ímpar.
Bombons de campari, falsas sementes de pêssego, "rochas" de chocolate com gergelim negro e yuzu e falsas nozes de chocolate branco com gergelim fecham com beleza e ludicidade um jantar onde, desde as louças até os mínimos detalhes de cada prato, nada é lugar-comum.
Poderia encerrar aqui meu relato, mas a experiência, em certa medida, teve continuidade nas vinte e quatro horas que se seguiram – de forma menos mágica, devo dizer. Na segunda metade do jantar, o organismo – tanto quanto a mente – já dava sinais de cansaço. O mal estar gástrico que se seguiu naquela madrugada e ao longo do dia seguinte deixava claro que os limites do meu corpo talvez tivessem sido testados.
Confesso que não foi surpresa pra mim. Não foram poucos os relatos que ouvi de pessoas que saíam do elBulli e passavam mal no caminho de volta. Sempre percebi que esses relatos dificilmente vinham a público e que as pessoas tendiam a se sentir provincianas por reagirem assim a uma refeição no restaurante mais disputado do mundo. O que me parece uma grande bobagem. Afinal, algo me diz que o corpo humano, via de regra, não há de reagir mesmo muito bem a uma refeição como essa, não necessariamente pelo número de pratos, mas pela excessiva mistura de tantos diferentes ingredientes e produtos.
Não pude evitar lembrar as palavras do grande chef Enrique Olvera, em sua recente palestra no congresso Mesa Tendências, em São Paulo, ao explicar por que optou por adotar menus mais reduzidos em seu premiado restaurante, o Pujol, na Cidade do México: “Depois de 15 pratos, não há mais surpresa. Prefiro causar mais impacto com um menu menor. E acho também que é uma forma mais natural e prazerosa de comer. Não quero que a pessoa saia do meu restaurante depois de tantos pratos e não consiga dormir. Não acho que essa seja uma maneira inteligente de comer.”
Entendam bem. Recomendo vivamente a ida ao 41 Grados e creio mesmo que voltaria numa próxima oportunidade. É uma experiência memorável, num restaurante único. Só acho que poderia ser perfeita se o menu tivesse a metade do fôlego.
41 Grados - Avinguda Paral-el 164 - Barcelona